Notas Sobre A Liberdade De Crença, Intolerância Religiosa E As Religiões De Matriz Africana – Diagnóstico E Propostas

Documento apresentado pela Iyalorixá Mãe Wanda D’Osun, do Ile Iya Mi Osun Muiywa, à Excelentíssima Senhora Ministra de Estado da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Profa. Matilde Ribeiro

I. Introdução

Desde a primeira constituição republicana, de 1891, o Brasil aboliu formalmente a idéia de religião oficial, religião de Estado, ou algo que o valha. Incisiva e inequívoca nesta matéria, a Constituição de 1988 imprime ao Estado um caráter rigorosamente laico, vedando, em seu art. 19, inciso I, que o mesmo, de um lado, estabeleça alianças ou relação de dependência com qualquer religião ou culto; e, de outro, que embarace o funcionamento de culto de qualquer natureza.

O mesmo art. 5o, VI, consagra o princípio da liberdade de crença, da liberdade de culto e da liberdade de liturgias e de organização religiosa, insertas no catálogo constitucional das liberdades públicas.

Corolário da liberdade de crença, a disciplina de ensino religioso, embora prevista no Texto Constitucional, foi condicionada pela matrícula de caráter facultativo, consoante preconizado no art. 210, § 1º.

Ademais, a Carta da República deferiu imunidade tributária aos templos de qualquer culto (art. 150, inciso VI, alínea “b”).

Depurando o alcance da liberdade de crença, o art. 5o, inciso VIII, proíbe a privação de direitos fundada em credo religioso, merecendo destaque, no plano infraconstitucional, várias regras que estabelecem um conjunto de direitos aos templos, aos sacerdotes e aos fiéis de qualquer religião.

II. A intolerância religiosa/racial presente no cotidiano das religiões de matriz africana

A despeito dos dispositivos constitucionais e da legislação ordinária, a intolerância de natureza religiosa/racial configura uma das faces mais abjetas do racismo brasileiro, mantendo-se intacta ao longo de toda a história, e resistindo, inclusive, ao processo de democratização, cujo marco fundamental foi a promulgação da Constituição de 88.

Dados da realidade nos autorizam a afirmar a existência de um verdadeiro hiato entre os direitos constitucionalmente deferidos e o cotidiano de violações de direitos que vitimizam os templos e os ministros das religiões de matriz africana.

A despeito da inexistência de estatísticas confiáveis, há estimativas que dão conta de que metade dos indivíduos que declaram confissão religiosa católica (cerca de 50% da população brasileira), possuem algum tipo de vínculo não-declarado com o candomblé, um estudo exploratório levado a efeito em São Paulo, apontava a existência, nos anos 80, de cerca de 5.000 templos da religião de matriz africana, apenas no estado de São Paulo[1]. Estados importantes da federação, como o Rio de Janeiro, Bahia, Maranhão, Espírito Santo e Minas Gerais, possuem evidentes sinais de ampla difusão de práticas religiosas de matiz africano.

Não obstante, ainda hoje nenhum templo da religião de matriz africana tem assegurado a imunidade tributária, seus ministros não conseguem obter inscrição no sistema de seguridade social (na qualidade de ministros religiosos), assim como não têm acesso aos hospitais e demais instituições de internação coletiva. Os sacerdotes não têm o direito de serem sepultados nos templos, direitos estes não exercidos pelas religiões de matriz africana, seja em razão do desconhecimento, seja porque há resistências administrativas e mesmo judiciais ao seu exercício.

Por sua vez, os cartórios se recusam a reconhecer a validade dos casamentos celebrados nas religiões de matriz africana. Boa parte dos ministros, geralmente pessoas de origem extremamente humilde, envelhecem e morrem sem ter acesso à previdência social, sendo freqüentes as denúncias de invasão dos templos, praticadas por agentes de segurança pública, sem mandado judicial e a qualquer hora do dia ou da noite. Outrossim, vale ressaltar a existência de uma campanha sistemática de intolerância religiosa difundida pela mídia eletrônica (Tv e internet), impressa (jornais, revistas e panfletos), falada (rádio), contra as religiões de matriz africana. Em alguns estados, a exemplo do Rio Grande do Sul e Bahia, crescem as reclamações de tentativas de invasão, atentados e depredação de templos dessas religiões.

Por outro lado, a disciplina de ensino religioso, de matrícula facultativa, prevista constitucionalmente, tem sido implementada nos estados excluindo-se deliberadamente o acompanhamento e participação das religiões de matriz africana; no estado do Rio de Janeiro e São Paulo, o governo estadual contratou padres e pastores para ministrarem a disciplina nas escolas públicas.

Contrariando a Constituição, freqüentemente emprega-se o dinheiro público para recuperar templos de confissões religiosas, notadamente a Igreja Católica, e subvencionar a exibição de cultos católicos em emissoras de Tvs educativas

lll Propostas

Devemos realçar, inicialmente, que o combate à intolerância racial/religiosa integra as prerrogativas da SEPPIR. Isto porque a Medida Provisória no 111, de 21 de março de 2003, que instituiu a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, estabelece em seu artigo segundo que compete à Secretaria, entre outras, “a proteção dos direitos dos indivíduos e grupos raciais e étnicos, com ênfase na população negra, afetados por discriminação racial e demais formas de intolerância”.

De outro lado, não se pode olvidar que parte substantiva dos problemas enfrentados pelas religiões de matriz africana devem ser resolvida no plano Judiciário, por meio de ações judiciais e políticas que protejam os direitos e interesses e afirmem a dignidade da nossa religião.

Assim, sublinhamos a seguir algumas idéias propositivas que, a nosso ver, poderiam ser implementadas para a superação dos problemas apresentados:

1- A criação de uma comissão mista constituída por notáveis, encarregada de fazer a interlocução com os representantes das religiões de matriz africana e de formular políticas públicas que visem:

1.1-Assegurar imunidade tributária aos templos das religiões de matriz africana;

1.2-Garantir a obtenção de inscrição dos sacerdotes (Babalorixas/Ialorixas) na qualidade de ministros religiosos;

1.3-O acesso dos sacerdotes (Babalorixas / Ialorixas) aos hospitais e demais instituições de internação coletiva;

1.4-A validação civil do casamento nos templos das religiões de matriz africana;

1.5-O direito de sepultamento dos sacerdotes nos templos das religiões de matriz africana;

1.6-Evitar a invasão dos templos das religiões de matriz africana pelas autoridades policiais, sem a devida autorização judicial;

1.7-A capacitação de professores da rede de ensino fundamental e médio nas universidades, especialmente nas disciplinas de história, antropologia e sociologia, para ministrar aulas de religião (Obs: esta proposta foi propugnada por sacerdotes das mais diversas denominações religiosas no Estado de São Paulo, em 1998, com exceção da igreja católica);

1.8-Coibir a veiculação de programas de rádio e TV, assim como a distribuição de jornais, revistas e panfletos que ridicularizam, difamam e satanizam as religiões de matriz africana, induzindo e incitando os telespectadores e leitores a discriminarem tais religiões e seus fiéis;

1.9-A realização de um programa nacional de conscientização de direitos voltado para lideranças das religiões de matriz africana, por meio de seminários e da edição de materiais educativos. Desenvolver programa de conscientização dos ministros religiosos de matriz africana, por meio da produção de cartazes, cartilhas e vídeos, destinados a difundir informação e orientação para o pleno exercício dos direitos constitucionais;

1.10-A produção, edição e difusão de uma coletânea de leis e tratados internacionais referentes aos direitos das associações, dos templos e dos ministros religiosos;

1.11-A elaboração e construção de um programa de capacitação de advogados, com abrangência nacional, voltado para os aspectos legais da constituição das associações religiosas e para a defesa judicial da liberdade de crença e de culto;

1.12-A difusão dos tratados internacionais atinentes ao tema, bem como o encaminhamento de relatórios, denúncias e reclamações à Corte Interamericana de Direitos Humanos e demais fóruns internacionais de proteção dos direitos humanos;

São Paulo, 21 de maio de 2003

IYALORIXÁ WANDA D’OSUN*

*Com a colaboração do Ogã Gilberto Ferreira de Esu, Ogã Dr. Hédio Silva Jr e Prof. Mestre Petrônio Domingues.
Sede:Rua Carlos Belmiro Correia n°1240- Casa Verde- São Paulo
Cep 02532010 Fones (11) 39550359 / 39663211
Iya Wanda
esu@uol.com.br

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