Moforibale – por que honrar, honra
Reflexões de um realizador
Por Jorge Luis Sánchez
Traduzido perto Ricardo Ferreira do Amaral, advogado, artista plástico e filho de Airá
Interessante artigo sobre a investigação que leva a cabo cineasta cubano que busca as raízes da religião lukumí e seus progenitores em Cuba.
Reproduzido aqui do original que aparece na revista Internet Caimán Barbudo
A Olofi e a Martí
Tenho ido a muitas casas para recopilar dados e fotos. Agora o faço em melhores condições, mas, nos primeiros dois anos o fiz a pé, em guagua ou em bicicleta. O mesmo a Guanabacoa que a Párraga. Uma vez, sob o tremendo sol de agosto e com escasso alimento no estômago, questionei-me o sentido desta obsessão. Porém, reconforta saber que jamais alguém deixou de atender-me, mesmo quando, geralmente, chego sem prévio aviso.
Tenho visto lágrimas por viajar à recordação, outrora viril e hoje condenada ao olvido. Tenho visto a María Eugenia Pérez, una nonagenária que se consagrou em 1923, talvez a mais Alagbás de todas as Alágbás vivas, lubrificar seu bendito cérebro e produzir assombrosas lembranças para mim. Adoráveis conversadores que pedem que volte para ter outra conversaita (conversinha) porque num piscar de olhos se recuperaram da solidão e do tédio. Gente humilde com necessidades materiais, mas com uma fé exemplar em seus Orixás.
Ninguém jamais me pediu um centavo por um conhecimento em forma de lembrança. Certos investigadores, vindos de outras terras com maiores recursos e sob o amparo de famosas universidades, em troca de informação, pagam. Eu só posso oferecer honestidade enquanto me inclino e lhes rendo moforibale. Meus velhos santeros, agradecidos, espremem seu orí para satisfazer minhas lacunas.
Qualquer hermetismo pré-concebido cede, porque eles e suas lembranças, bem sabem, formarão parte de um destino vital: a memória da Regla de Ocha, da Cultura cubana, da Nação. Então, diante de cada cortesia de suas memórias, pergunto-me como poderei recompensar tanta recordação.
Em 1999 tinha terminado Culto a los Orishas, um seriado audiovisual de vinte capítulos sobre a Regla de Ocha. Um dos meus produtores, entusiasmado com o resultado, começou a alentar-me para realizar uma segunda parte que compreenderia vários Orishas ausentes na primeira. Comecei a escrevê-la, mas sob a premissa de uma maior implicação social do fenômeno religioso.
Dentro de um dos novos capítulos concebi uma modesta homenagem à memória de ilustres santeros, sem os que hoje não se poderia falar de herança lucumi, como dizia a minha avó, —ainda que hoje saibamos que se diz y é, ioruba.
Quatro ou cinco nomes de santeros imprescindíveis, têm-se convertido em cerca de quinhentos. Una grande parte destes, quase esquecidos por esse lado escorregadio que também têm a memória e a oralidade.
Data de nascimento e morte, orixá assentado, padrinhos, ramo religioso, aportes fundamentais, entre outros dados, reconstroem o perfil de um grupo de fundadores chegados aqui como escravos, até os primeiros cubanos assentados nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do XX, sem me deter até os consagrados nos anos 70. Mi investigação apóia-se fundamentalmente na memória e na oralidade dos mais velhos da comunidade praticante e nos documentos escritos pelos santeros.
Com emoção inenarrável tenho visto um documento de mais de cem anos que desmente que la exímia Timotea Albear, mais conhecida por Latuá, chegou a Cuba em 1867, quando a escravidão tinha acabado. Exceto sua descendência filial, ninguém mais sabia que foi aprisionada numa expedição de escravos em 1867. Por ser emancipada se lhe concedeu a liberdade em 1870, para logo ser uma das mais inteligentes e ilustres Oriatesas que junto a Lorenzo Samá, conhecido por Obbadimeyi (seu nome na Ocha), contribuiu para modelar o que hoje se conhece como Santería.
À semelhança da tradição africana que outorga à mulher a responsabilidade pela criação e a educação, poucos sabem que no século XIX as oriatesas foram mulheres lucumis que levaram o peso do conhecimento e a direção das consagrações. A elas devemos tudo.
Com a chegada do século XX, envelhecidas as fundadoras e superada a desconfiança pelos cubanos, cederam o cetro aos primeiros criollos e criollas; entre estes, o antes mencionado Lorenzo Samá, Genaro Gómez (Oshún Gumí), José Roche (Oshún Kayoddé) e Fernando Cantero (Changó Larí). Entre as mulheres, a primeira que pôde ter exercido tão importante responsabilidade, foi uma mulata filha de Oxum, chamada Guillermina Castell (Oshún Laibó). Logo lhe seguiram Josefina Aguirre (Oshún Guere) até Carmen Miró (Egüín Bi). Nos nossos dias, são os homens os que ocupam este cargo. Alguma vez haverá de se encontrar a causa de por quê as mulheres abandonaram essa hierarquia.
Quem puderam ser os primeiros criollos assentados pelos lucumis? Quem levou a Regla de Ocha ao oriente do país, à Venezuela ou à Europa? Quando saem de Cuba por primeira vez os batás? Quem foram algumas das pessoas assentadas que viveram mais anos? Quem foram e são as personalidades sociais, políticas, científicas e artísticas consagradas na Regla de Ocha que têm deixado uma marca insubstituível dentro da forja da nossa identidade? Como é que a Regla de Ocha começa a devolver a auto-estima a centos de pessoas marginadas da sociedade cubana dos primeiros vinte e cinco anos de República no passado século XX? Quando entra o branco? Estas e muitas perguntas poderiam ficar parcialmente, ou totalmente esclarecidas.
Igualmente, os fatos que recolhe nossa história e as diferentes recomendações que, segundo o oráculo de Ifá, ofereceram las letras del año, vista esta como uma das maneiras da santería, um dos cultos mais democráticos que se praticaram e se praticam em Cuba, onde têm cabida os homens e as mulheres sem distinção de raça, credo político e inclinação sexual, de se implicar socialmente com a realidade do país.
Quando se estudam estes fatos, se aprecia com claridade que o desenvolvimento científico e cultural não têm sido negados pela Regla de Ocha, tudo o contrário, tem se enriquecido com os avances, daí um dos essenciais segredos da sua sobrevivência na era da biotecnologia e da cibernética.
Na Santería, os praticantes uma vez consagrados, obtêm outro nome em ioruba. Porém, também essa especial maneira nossa de designar, faz com que a não poucos santeros lhe substituam o nome por um apelido. Resgatar os verdadeiros nomes tem sido um trabalho complicado, o mesmo que organizar as casas de santo por ramos, partindo desde os fundadores; aquelas mulheres Lucumis às que antes fiz menção, às que, diga-se de passo, alguma vez a nação cubana deverá erigir um monumento de agradecimento pelo o que com suor, desarraigo e sangue, semearam nesta terra. Porque, se bem há que se agradecer à África parte do que somos, África também agradece a Cuba, particularmente Nigéria, o que temos feito pela sustentação da cultura Ioruba, não só aqui, senão no mundo.
Tem sucedido que tenho chegado a uma casa e a única pessoa capaz de me dar um dado, ou confirmá-lo, recém tem falecido, ou pela idade avançada tem perdido a capacidade de falar, de recordar, de saber quem é. Triste, porque nunca mais se saberá algo importante, tenho desejado, idealmente, ter nascido antes para não chegar tarde. Reajo e culpo a outros que não se preocuparam em recolher e escrever. Leio e releio Fernando Ortiz, Lydia Cabrera, Rómulo Lachantañeré, Teodoro Díaz Fabelo, Natalia Bolívar, Martínez Furé e outros autores, que por questões não superadas em suas épocas, ocultaram e protegeram inumeráveis praticantes e informantes. Mas, como estou fazendo tudo o contrário, me consola entender que antes, talvez fosse impossível.
Meu propósito também é recuperar a imagem daqueles Alagbás. Lamentavelmente muitas fotos têm-se perdido, mas a maioria, graça às técnicas de restauração digital haverão de se salvar definitivamente. Outros velhos santeros permanecem anônimos dentro de um documentário que nada tem a ver com o assunto religioso ou esquecidos nas páginas de alguma prensa escrita, como o memorável artigo “Eshú Bi ha muerto”, publicado em Bohemia quando faleceu a grande santera, Josefa Herrera, chefe de um dos dois Cabildos, (do outro, o era Susana Cantero) que estremecia de gozo e devoção à sua querida Regla nos 9 de setembro.
Em um desses artigos vejo marchar à frente, tímidas e solenes, a Virgem de Regla, a La Caridad del Cobre, a Virgem de Las Mercedes e a Santa Bárbara, que por primeira vez e para sempre, nesta terra cubana serão também Yemayá, Oshún, Obbatalá e Changó, mas que agora, e muitas mais, vão secundadas, não por cânticos gregorianos, senão pelos cantos nasalados iorubas a golpe dos fabulosos tambores batás. Negros, brancos, chineses e mulatos dançam, suam e repetem os coros atados por nós a um cordão invisível, de força maior: a identidade cubana.
0 Pepa, como chamavam àquela humilde filha de Elegguá, era inconsciente do seu aporte, não só à liturgia religiosa, senão à identidade nacional, pois ali se re-fundavam limites aparentemente impossíveis de se misturar. Hoje teria todo o direito de ganhar algo parecido à medalha pela Cultura Cubana.
Porque a Regla de Ocha, e creio que as outras religiões de origem africana, tem a virtude de quanto maior for a implicação ritual e litúrgica, mais rápido conquista e se derrama como componente cultural. Não só Pepa, outros ilustres Olochas mereceriam um reconhecimento —social, seria muito melhor— por ter contribuído, junto à aresta espanhola, a que este arquipélago, de tão breve tempo como nação, possa oferecer prontamente ao mundo um universo religioso próprio, autêntico e delineador de seu rosto nacional.
É do meu agrado que os santeros preservem sua memória. Na dimensão em que estão, esses grandes Olochas não merecem o anonimato. Humildes sementes foram: coloca-los onde cabe é justiça histórica possível.
Estas pesquisas vão ampliando minha auto-estima como cubano e como apaixonado defensor deste culto do qual desde menino tenho sido testemunha. Quando alguma vez der por terminadas estas buscas, espero que o resultado tenha um alto valor para os meus compatriotas; sejam praticantes, ateus, laicos, antropólogos, etnólogos ou simples leitores ávidos de conhecer.