Testemunho Lukumi.

Miguel W. Ramos, Ilarí Obá, Obá Oriaté Lukumi
Este artigo aparece no livro “Resistencia y Solidaridad—Globalización capitalista y liberación.” Raúl Fornet-Betancourt, ed. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 2003 (143-148).

Traduzido por Ricardo Ferreira do Amaral, advogado, artista plástico e filho de Airá.

Ao mês de ter nascido, meu pai, sentado num sofá, me balançava sobre o seu peito para que eu dormisse. O sono o venceu mais rápido do que a mim. Pouco tempo depois, despertou ao ouvir os gritos da minha mãe ao ver minha cabeça e a camiseta do meu pai, totalmente encharcadas de sangue: meu sangue. De imediato, correram à Casa de Socorros em Arroyo Apolo pensando o pior.

Resulta que na minha moleira tinha se encaixado a ponta de uma espada de ouro que meu pai levava em sua corrente. Ainda que meu pai era sacerdote de Obatalá, dita espada tinha sido consagrada em Shangó, o Orixá do trovão, pela grande afinidade que ele tinha com esta entidade. Afortunadamente, o dano foi mínimo e a ferida sarou sem deixar marcas visíveis.

Às duas semanas deste fato, meus pais acudiram a um toque de tambor e tão pronto entraram pela porta comigo nos braços, Shangó, possuindo uma das suas sacerdotisas, me tomou dos braços do meu pai e começou a dançar comigo em seus braços. Depois de um tempo, me devolveu ao meu pai e, esfregando minha cabeça, disse aos meus pais que isso que tinha me sucedido (a marca que ele [Shangó] tinha feito em minha cabeça) era para que se soubesse que onde quer que eu fosse em minha vida, eu era seu filho. Shangó havia me marcado para que eu não me extraviasse dele no mundo! Meus pais ficaram estupefatos, pois só eles, meus avós e os médicos de guarda na Casa de Socorros conheciam o que tinha me acontecido. Shangó não falava mentiras!

Aos treze anos, na fria e estranha cidade de Nova Iorque, fui ordenado sacerdote de Shangó na religião lukumi, exilada nos Estados Unidos junto a um crescente número de cubanos que buscavam fugir do sistema totalitário implantado na ilha pela revolução Castrista. Com treze anos, o que eu menos desejava era ficar rapado até a carequice, vestido imaculadamente de branco, e muito menos que me vissem meus amigos, que indubitavelmente fariam troça de mim e da minha estranha religião.

Nessa idade, tendo vivido em Nova Iorque desde os seis anos, a religião lukumi era algo ilógico e insensato para mim, ainda que não estranha, eis que desde que chegamos de Cuba, meu pai exercia como sacerdote lukumi e também como espiritista. Na minha casa no Brooklyn, quase todos os fins de semana ocorriam atividades religiosas. Quando não era uma iniciação, era um toque, um aniversário de iniciação, ou uma missa ou recolhimento espiritual. Ainda que eu vivesse constantemente rodeado por este mundo místico-religioso, mantinha distância, já que a religião me parecia loucura, uma absurda superstição cubana. Quando por casualidade, a curiosidade me levava a perguntar ou indagar, a resposta usual era que com o tempo saberia, pois nesse momento era muito jovem para entender. Devo admitir que mesmo depois de iniciado, naquela época me custou trabalho entender. Não obstante, a vontade de Olodumare e dos Orixás pôde mais do que a minha vaidade e minha ignorância.

Meu maior conflito foi com o catolicismo e a relação dos Orixás com os santos da Igreja Católica. Minha avó, devota de Santa Bárbara toda sua vida e sacerdotisa de Shangó, me dizia que essa santa e Shangó eram o mesmo. Santa Bárbara era la forma percebida pelos católicos e Shangó era como se lhe percebia na África. Essa analogia me ocasionava grandes conflitos, já a santa Católica não se parecia em nada ao deus ioruba/lukumi. A imagem de Santa Bárbara que havia na sala da minha casa era uma escultura de uma bela mulher, de rosto prazeroso, sorridente. Se essa era Santa Bárbara, em nada se parecia com Shangó.

Shangó, a quem eu havia visto possuindo seus sacerdotes muitíssimas vezes, era tosco, ruidoso, extremadamente varonil. Ao dançar, fazia alusão à sua masculinidade com o movimento de suas mãos que ascendiam ao céu para depois descender como um raio em direção à área de seus genitais. Quando via Oshún na cabeça de alguma sacerdotisa, em sua dança, Shangó tratava de conquistá-la, de seduzi-la, ensaiando o já bem conhecido mito de sua atração pela divindade lukumi da sensualidade e do amor. Em nada se pareciam Santa Bárbara e Shangó para mim.

Com o tempo, aprendi que Santa Bárbara era a patrona dos artilheiros, que cuidava dos fortes espanhóis e amparava os soldados da mãe-pátria, e que Shangó, também se relacionava com a guerra e tinha um grande exército à sua disposição. Ambos tinham vivido em um grande castelo e ambos vestiam de vermelho e branco. Santa Bárbara portava uma espada e Shangó um machado bi-pene. Quando trovejava, minha avó que tinha horror aos trovões, corria a cobrir Shangó e a Santa Bárbara com tela branca, pedindo-lhes que tivessem misericórdia. Finalmente, encontrei algo em comum. Não obstante, ainda me chocava o contraste sexual: Santa Bárbara, a mulher de aparência delicada e Shangó, o homem tosco, varonil e sedutor. Minha família estava louca!

Durante meu ano de iyawô ou recém ordenado, minha vida continuou como de costume. De casa à escola e da escola à casa, especialmente durante o inverno. Ao terminar minhas tarefas, saia a brincar com meus amigos, quem contrariamente ao meu temor, nunca fizeram troça de mim. Não sei se foi por ingenuidade, respeito ou quiçá temor, já que os rumores circulavam de que na minha casa se praticava Vudu e os filmes de monstros e de ciência-ficção de Hollywood contribuíam ao estereótipo negativo do Vudu e conseqüentemente, também das religiões africanas. Quiçá meus amigos temiam que eu tomasse alguma represália mágica contra eles, fincando um boneco de pano com alfinetes para que lhes ocasionasse dano, ou quiçá nunca se deram por conta. Não sei.

Não lembro quando foi que escutei a palavra “Ioruba” por primeira vez. Os iorubas em Cuba foram introduzidos como lukumi. A nomenclatura “Ioruba” era desconhecida em Cuba. Não obstante, conhecer esta palavra despertou em mim uma curiosidade, quiçá uma necessidade, de investigar mais sobre este tema. Foi uma tarefa difícil, já que a literatura existente nesses anos não era abundante, mas isto só serviu para incrementar em mim o desejo de persistir e indagar. O resto é historia. Desde os quatorze anos comecei a praticar antropologia sem ser antropólogo, conduzindo trabalhos de campo e levando apontamentos sobre minhas investigações, tanto literárias como no campo.

Mas, as minhas investigações não eram para satisfazer fins nem requisitos acadêmicos, senão que serviam para me ajudar a obter uma melhor compreensão da religião na que tinha sido iniciado. Sem embargo, ao entrar à universidade em Nova Iorque, quando me graduei na escola superior, decidi que queria ser contador público e não antropólogo. Nesse momento não relacionei minha curiosidade religiosa com o papel acadêmico que por satisfação pessoal estava desempenhando. Quiçá foi por isso que não terminei minha carreira universitária naquele momento, conformando-me com uma escola vocacional e um curso de dois anos de administração comercial.

Em 1978, meus pais decidiram abandonar Nova Iorque e se mudar a Porto Rico. Eu desejava ficar em Nova Iorque, mas Shangó pensou em outra coisa. Ele insistiu que eu acompanhasse meus pais a Porto Rico, já que, segundo ele, seria uma terra bendita para mim. Dito e feito! Ainda que eu tivesse funcionado como sacerdote e Oriaté em Nova Iorque, foi em Porto Rico onde minha capacidade sacerdotal floresceu. Meus êxitos nessa ilha foram numerosos e meus conhecimentos, estudos e entendimentos da minha religião aumentaram apesar de ter encontrado ciúmes, rivalidades e oposição.

Eventualmente, meus pais voltaram a Nova Iorque, mas Shangó insistiu em que eu permanecesse em Porto Rico. Para aquele então eu já tinha me casado, tinha o meu próprio negócio, um ervanário, do qual vivia relativamente bem e não me faltava trabalho dentro da religião. Como dizemos no vernáculo lukumi-cubano, tinha um “povo” em Porto Rico. O quê mais podia pedir. Sem embargo, não me sentia a gosto ali e a cada instante lhe pedia permissão a Shangó para ir embora da ilha. Este só dizia que não era o momento.

Em 1983 fui a Cuba por primeira vez desde que fui embora nos anos sessenta. Nessa época, conheci minha família religiosa na ilha, participei de uma série de rituais e conduzi trabalho de campo entre muitos sacerdotes na ilha. Voltei novamente a Cuba em 1984. Essa foi a viagem que deu outro curso a minha vida e à qual vivo eternamente agradecido. Em um tambor que dei para Elegbá (o Orixá do destino, que vigia os caminhos dos devotos) Shangó veio à terra e falou dos meus desejos de me mudar de Porto Rico, dando-me a permissão que eu tanto havia lhe pedido. Mas essa permissão foi condicional, com tanto que eu lhe prometesse que eu ingressaria novamente na universidade e obteria um título. Desde logo, acedi!

Em outubro do mesmo ano, me mudei a Miami, a capital do exílio cubano. Do mesmo modo que Porto Rico, Miami provou ser uma cidade frutífera para mim. Em seguida comecei a trabalhar como contador numa companhia de móveis muito conhecida nessa cidade e a me introduzir na comunidade religiosa. A universidade teria que esperar que eu estabelecesse raízes firmes em Miami, e por tanto, ano trás ano seguia dizendo a Shangó que pronto cumpriria com minha promessa, empregando a falta de tempo como escusa. Mas Shangó era mais sábio que eu, como bem o tempo me demonstraria.

Da noite para a manhã, minha relação com meu chefe imediato na companhia começou a se deteriorar inexplicavelmente. Até então, ele e eu havíamos tido boas relações, inclusive me permitia tomar decisões de grande envergadura durante sua ausência. Sua confiança em mim era total e incondicional. Ainda hoje me pergunto o quê foi o que se passou, pois não há explicação humana que possa explicar a animosidade que surgiu entre nós. Demais está dizer que em janeiro de 1988, logo de voltar de umas férias, renunciei ao trabalho sem aviso prévio.

Passaram-se meses e não conseguia trabalho em Miami. Onde quer que solicitasse trabalho, estava sobre-capacitado para a posição ou tomavam outra pessoa sem me dar explicação alguma. Finalmente entendi que algo sobre-humano estava controlando minha vida nesse momento, pero não conseguia, ou quiçá não queria, identificar o que era. Tinha visto Shangó em vários toques e rituais, mas este não me dizia nada. Tal parece que estava me ignorando intencionalmente. Finalmente, no restou outro remédio do que acudir a ele através da adivinhação. Busquei um Oriaté que não me conhecia para que interpretasse o oráculo e a “conversa” de Shangó. O provérbio do odu ou signo divinatório que me veio nesse momento aludia a uma dívida que eu tinha com Shangó: “Aquele que deve e paga, fica franco”.

Nunca associei a dívida com a minha promessa de voltar à universidade. Quiçá estava muito atribulado com o meu dilema nesse momento e não conseguia entender o que era o que Shangó me reclamava. Até que finalmente, o Oriaté me diz que Shangó dizia que queria que eu estudasse. Como si tivessem estourado raios ao meu redor, me lembrei! Claro! Minha promessa, minha dívida, minhas dificuldades econômicas: tudo tinha uma razão de ser. Shangó tinha me levado a um abismo pelo meu descumprimento e ignorava as dificuldades que eu estava atravessando com todo propósito, para que eu reagisse e me desse por conta da minha falta para com ele.

No dia seguinte, dei os exames de ingresso ao Miami Dade Community College e em janeiro de 1990 comecei minha carreira universitária em Miami. Atualmente, estou terminando uma tese de mestrado em história na Florida International University e penso continuar com o doutorado. Mesmo que nesta altura da minha vida o processo não tenha sido fácil, já que é difícil estudar, trabalhar, criar um filho e cumprir com minhas responsabilidades sociais, religiosas e acadêmicas. As conquistas que tenho obtido e a satisfação pessoal têm me recompensado pela difícil e árdua tarefa.

A religião lukumi tem enchido grandes vazios em minha vida, ao mesmo tempo em que tem me servido de guia, dando-me a direção necessária para viver uma vida melhor, bem como para ser um melhor ser humano. È tanto o agradecimento que tenho por este sistema religioso e às divindades do seu panteão, que não existe maneira humanamente possível de lhe recompensar pelas inumeráveis bênçãos que têm derramado sobre mim. Inclusive, lhe devo até o filho que tenho.

Desde que nos casamos em 1979, por mais que tratássemos, minha esposa não conseguia ficar grávida. Consultamos os melhores médicos em Porto Rico e depois, em Miami, acudimos ao centro de infertilidade da Universidade de Miami. Nos submetemos a quantas provas existiam para a infertilidade e, segundo os médicos, o caso foi diagnosticado como inexplicável, já que nenhum de nós era estéril. Por mais tratamentos e recomendações que nos fizeram, a ciência não conseguiu resolver a misteriosa condição. Os Orixás diziam que teríamos filhos, mas tampouco víamos nenhum resultado ou intervenção divina da parte deles.

Em maio de 1988 voltei a Cuba junto com minha esposa, onde ambos recebemos a Oduduwá, quiçá o Orixá mais elevado da religião lukumi. Na cerimônia divinatória conhecida como itá, Oduduwá pressagia o nascimento de um filho. Nós, já dubitativos, tivemos isso em conta, mas não elevamos nossas esperanças, pois isso já tinha sido dito tantas vezes, mas nunca se realizava. Ao concluir, o Oriaté enfatizou que ao voltar minha esposa e eu na próxima vez a Cuba, voltaríamos com um filho. Voltamos a Miami e nossas vidas continuaram como de costume, sempre pensando na possibilidade de ficarmos sem filhos de por vida. Mesmo que ainda não tenhamos voltado a Cuba, em 24 de dezembro de 1990, sem tratamentos de nenhum tipo, nasceu nosso filho César.

Através do meu Orixá e da minha religião, tenho tudo o que tenho sonhado em ter, inclusive um lar estável e um belo filho, gozo de saúde, tenho viajado onde tenho querido, tenho publicado livros e escritos, tenho participado de um sem número de conferências e continuo a árdua tarefa de limpar a imagem negativa que a ignorância e o etnocentrismo ocidental têm dado a uma bela e valiosa crença religiosa trazida em buques escravistas ao Novo Mundo. Tudo isto e muito mais, agradeço a um Orixá, a uma divindade e a um sistema religioso que muitos têm considerado primitivo e incivilizado! Maferefun Shangó! Se volto a nascer, a única coisa que peço a Deus é que me permita voltar a ser Olorixá lukumi.

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