© Dos arquivos de Miguel “Willie” Ramos, Ilarí Obá, Obá Oriaté
Traduzido por Ricardo Ferreira do Amaral, advogado, artista plástico e filho de Airá.

O seguinte é um trecho de “The Empire Beats On: Oyo, Batá Drums, and Hegemony in Nineteenth-Century Cuba.” Tese de Mestrado. Miami: Florida International University, 2000 (Ch. V)

A sobrevivência das culturas africanas em Cuba é em grande medida devedora aos cabildos de nación ou associações étnicas africanas. Os cabildos foram baseados nas cofradías espanholas (confrarias, grêmios ou fraternidades) primeiramente organizadas em Sevilha, ao redor do século XIV. Estas cofradías foram colocadas sob a tutela de um santo católico e suas reuniões tinham lugar na capela do santo. Ortiz informa que esses grêmios foram organizados durante o reinado de Alfonso el Sabio, quem, após a criação do código legal espanhol conhecido por Las Siete Partidas, desejou “pôr ordem nas questões eclesiásticas e civis”.[I] Isidoro Moreno, um historiador espanhol que fez uma impressionante investigação das cofradías africanas na Espanha, cita que Ortiz de Zúñiga escreveu em 1474, que os escravos africanos em Sevilha eram tratados bondosamente e lhes era permitido “reunir-se para suas danças e celebrações nos feriados, de maneira que depois cumpririam prazerosamente seu trabalho e seriam mais tolerantes com seu cativeiro”.[II] Assim como Ortiz, Moreno concorda em que essas foram as precursoras dos cabildos afro-cubanos.[III] Philip Howard também tem adotado este ponto de vista numa publicação recente a respeito. [IV] Howard também aponta para a existência de instituições comparáveis na África.[V]

Os cabildos têm existido em Cuba desde o século XVI. Sandoval escreveu que a primeira cofradía africana de que se tem documentação em Cuba, foi formada em 1598.[VI] Em 1691, os ararás adquiriram um solar na rua Compostela em La Habana, onde foi fundado o primeiro cabildo. No presente, este solar ainda é conhecido como el solar de los Arará (o solar dos ararás).[VII] Contudo, a população africana da ilha ainda não era significativa naquele tempo, nem se tornou, a não ser algum tempo depois. Durante os séculos XVI e XVII, os cabildos não eram tão expressivos como o foram a partir do boom do açúcar no século XVIII. Como a população africana da ilha se desenvolveu a fins do século XVIII, os cabildos serviam a vários propósitos. As autoridades coloniais e a legislação espanhola favoreceram inicialmente o estabelecimento dos cabildos para diversão da população escrava da ilha.[VIII] Inicialmente, foram destinados a serem meios de controle social, um tipo de válvula de escape que ajudou a aliviar as tensões entre os amos e os escravos. Os africanos reuniam-se em seus cabildos quando lhes era permitido, para dançarem nos feriados de acordo com os “costumes das suas nações”.[IX]

Na maior parte, os cabildos foram organizados por escravos ou africanos manumissos pertencentes à mesma filiação étnica. Parece terem sido muito populares nas áreas urbanas.[X] Para os africanos, o cabildo serviu para muitas finalidades. Howard enfatizou que os cabildos foram cruciais para a conservação da humanidade dos escravos, superando injustiças sociais.[XI] Como sociedades de ajuda mútua, coletavam dinheiro ou juntavam recursos para assistir a um membro em tempos de doença ou morte e muitas vezes, para ajudar a alforriar um compatriota.[XII] Provavelmente os cabildos também serviram como asilo para escravos fugitivos. Ainda que o argumento de Howard de os cabildos não terem sido apenas “grupos de africanos reunidos para cantar e dançar a música de suas culturas respectivas” seja obviamente válido, isto não pode negar que uma das mais importantes funções do cabildo foi religiosa por natureza.[XIII]

Os cabildos foram as “igrejas” dos africanos, lugares onde podiam consultar as divindades e ancestres que os acompanharam na viagem forçada. Para aqueles escravos que persistiram em suas tradições africanas como um dos poucos meios de socorro à disposição, o cabildo representou um pedaço da África em território hostil onde podiam manter vivas a sua fé e as esperanças de mudança. Tal como Sandoval tem escrito, os cabildos foram “as instituições que fizeram viável a conservação da idiossincrasia, da religião e da cultura de cada nação africana”.[XIV] Simultaneamente, os cabildos constantemente vigoraram as identidades que a aculturação ocidental tratou de erradicar. O batá iorubano, a Nganga bantu e o iremé carabali foram utilizados nos cabildos, não somente em seu contexto religioso original, mas também como métodos de resistência que inibiram os amargos processos de deculturação e aculturação e aliviaram a humilhação e o senso de deshumanização associados à escravidão. As canções, danças e ritmos dos tambores, executados para as divindades africanas em uma terra tão hostil para os africanos, foram tanto mecanismos religiosos quanto inerentes a manter viva a sua africanidade. Neste sentido, o cabildo foi um centro de resistência à hegemonia cultural espanhola.

Para a sociedade branca espanhola e cubana, os cabildos foram necessários, mas instituições bárbaras que ela preferia não ver ou escutar. No final do século XVIII, ela começou a ficar preocupada com a classe dirigente. Vários artigos do Bando de Buen Gobierno y Policia, de 1792, foram dirigidos ao controle dos cabildos e seus membros. O artigo 39 clama por atenção às queixas contra os cabildos localizados em ruas habitadas por “ vizinhos honestos que justamente se queixam do desconforto ocasionado pelos sons grotescos e desagradáveis de seus (dos africanos) instrumentos. . . . Ordeno que em um ano, a contar da data de hoje, todos os cabildos sejam transferidos às margens da cidade”.[XV] A legislação seguinte do século XIX, reforçou muitas dessas proibições.[XVI]

Pelo século XIX, todos os cabildos estavam localizados fora dos muros da cercada cidade de La Habana. Para os brancos, isto significou que não teriam que ouvir os “barulhos infernais”[XVII] resultantes das celebrações africanas. Para os africanos, esta expulsão do interior da cidade foi uma bênção disfarçada, porque lhes permitiu um grau de privacidade que, de outra maneira, não haveriam tido. Por tal, isto foi um capital acrescido a mais na antecipação da aculturação, facilitando a transmissão da cultura africana.

Fora dos muros da cidade, os cabildos não foram tão reprimidos quanto o foram dentro da cidade e conseqüentemente, tiveram maior oportunidade de conservar aspectos culturais que não teriam resistido tão vibrantemente sob os olhos sempre vigilantes dos cubanos.

Ocasionalmente, os cabildos acalentaram conspirações de insurreição dos escravos A Conspiração de Aponte, em 1812, nasceu no famoso cabildo lukumi Changó Tedún.[XVIII] Acredita-se que José Antonio Aponte tenha sido um sacerdote de Shangó e o diretor do cabildo quando a conspiração foi planejada.[XIX] Aponte é creditado com ter sido o “primeiro cubano que sonhou com a bela inspiração de rebelião contra a dominação espanhola”.[XX] Em 1843, antes da barbaridade resultante do descobrimento da Conspiração de Escalera, parece que a tensão tinha afetado os cabildos. Em 19 de novembro, o regente do distrito de Puerto Príncipe ficou alarmado com a criação de um cabildo em seu distrito, que tinha sido fundado por 1.200 escravos. Estava preocupado com eles, pois “a piedade dos nossos soberanos permitiu aos escravos que realizassem suas celebrações em momentos específicos do ano, dando-lhes um respiro para suavizar a sua sorte, mas, não esqueçam de adotar todas aquelas precauções que evitem, em primeiro lugar, a inversão das boas intenções de vocês, uma graça concedida tão generosamente”. [XXI}

Na virada do século, os cabildos eram praticamente uma casta moribunda. Em 1884, a procissão para celebrar a Epifania, algo que muitos cabildos vinham praticando por décadas, foi proscrita. Em 1887, a legislação requereu que os cabildos obtivessem reconhecimento oficial e licenças. Outra lei, de abril de 1888, proibiu aos cabildos de se organizarem no típico estilo colonial e demandou que em vez disso, se organizassem como sociedades ou organizações, seguindo as leis estabelecidas para as sociedades cubanas. [XXII]

No século XX, ainda que o cabildo, como sociedade de ajuda mútua, parece ter se reduzido, se não desaparecido, os olorixás continuaram a desfilar os orixás lukumis através da localidade de Regla, em La Habana, sob o disfarce de imagens católicas. Regla foi um importante enclave lukumi no século XIX e no início do século XX em Cuba. Muitas tradições lukumis que sobreviveram em Cuba, vieram à ilha através do porto de Regla. Houve duas procissões de cabildos em Regla que obtiveram grande fama: a do cabildo Yemayá, de Ño Remigio Herrera, Adeshina, e a do cabildo de Susana Cantero, Omí Toké. A do primeiro foi herdada por sua filha Josefa Herrera, Eshú Bí, mais conhecida como Pepa, e é através de Pepa que a procissão ganha eminência. Omí Toké foi uma creole descendente de calabaris e lukumis, que foi ordenada para Yemojá em Palmira, ao redor de 1900, por Andrea Trujillo, Ewiyimí. Ela foi uma das iyalorixás mais respeitadas de Regla. Eshu Bí faleceu em julho de 1947 e Omí Toké morreu em agosto de 1948. Até as suas mortes, estas duas sacerdotisas competiram todos os anos para superar a procissão uma da outra.

As procissões começavam na igreja de Regla, no extremo Noroeste da cidade. Ali, apareciam colocadas quatro imagens de santos católicos diante do altar, e o sacerdote acolhia a massa e pronunciava suas bênçãos borrifando as imagens, os tambores e a multidão com água benta.[XXIII] Na entrada da igreja, os diretores do cabildo jogavam o obi, um dos oráculos lukumis, para avaliar se as divindades concordavam com rito católico, antes de prosseguir com a marcha. Depois de o oráculo ter confirmado que os orixás estavam satisfeitos, os fiéis atravessavam a rua até o começo da baia, onde novamente consultavam o oráculo e ofereciam seus respeitos no mar a Yemojá e a Olokún. Os devotos depositavam oferendas para estes orixás na água, enquanto os tambores batás tocavam e a multidão respondia com cantos e louvores às divindades. A possessão pelos orixás ocorria muito freqüentemente durante este ritual e as divindades amiúde acompanhavam seus devotos na celebração.

Da baia, a procissão marchava a pé através da cidade, descendo diretamente a rua Maceo e liderada pelos tambores batás. No caminho, o cabildo fazia pausas na delegacia de polícia, no escritório do alcaide e nos lares de importantes olorixás que viviam na cidade. Não havia conflitos com as autoridades locais porque as permissões chegavam automaticamente todo ano desde o Capitólio em La Habana ao escritório do alcaide, na municipalidade da cidade, sem que os olorixás as solicitassem. Em cada porta de entrada, consultavam o oráculo e pagavam tributo à casa e aos seus habitantes, cantando louvores, acompanhados pelos tambores, aos humanos e aos orixás: se um ou uma olorixá vivia na casa, teria um obi pronto para ser jogado na entrada. Uma vez que o cabildo tivesse pagado tributo às divindades tutelares da casa, e o obi tivesse respondido favoravelmente, então, o/a olorixá homenageado/a acompanhava a multidão de marchadores em sua parada, descendo pela longa e estreita rua da cidade portuária. A procissão terminava na entrada do cemitério de Regla, no outro extremo da cidade. Eram em torno de duas milhas desde o ponto de partida até os portões do cemitério. Olorixás de toda a ilha viajavam todos os anos a Regla para o evento.[XXIV]

Por causa da necessidade de conciliar suas práticas religiosas e cumprir com o mandado da sociedade de todos os cidadãos serem bons católicos, os devotos do cabildo carregavam as estátuas de quatro santos católicos através da cidade: Nossa Senhora das Mercês, representando a Obatalá, Nossa Senhora da Caridade, representando a Oshún, Nossa Senhora de Regla, representando a Yemojá e Santa Bárbara, representando a Shangó. Eles transformaram, mediante consagrações rituais, estas estátuas em manifestações “brancas” dos orixás.[XXV] Para os indivíduos forâneos à cultura e à religião, pela aparência externa das estátuas, não havia nada mais do que a representação de santos católicos; para os olorixás, estes santos eram divindades da Iorubalândia representadas através de um novo meio. Os fiéis desfilavam estas estátuas através de Regla sobre barras apoiadas em seus ombros. Adornavam-nas com elaborados arranjos florais, rendas caras e tecidos metalizados e bordados à mão. Os homens carregavam as imagens representando a Yemojá e a Obatalá, e as mulheres carregavam Oshún e Shangó. [XXVI

Notas finais

[I] Fernando Ortiz. Los cabildos y la Fiesta Afrocubana del Dia de Reyes. Na Revista Bimestre Cubana XVI. (Jan-Fev. 1921). Em 1992 (versão que possuo), foi reimpressa pela Editorial de Ciencias Sociales em La Habana. A citação é de Ortiz 1992 : 5; Mercedes Sandoval La Religión Afrocubana. Madrid: Playor, 1975 : 44; Jorge Castellanos e Isabel Castellanos, Cultura Afrocubana 1. Miami: Ediciones Universal, 1988 : 110. Vide também Isidoro Moreno. La Antigua Hermandad de los Negros de Sevilla: Etnicidad, Poder y Sociedad en 600 Años de Historia. Sevilha: Universidad de Sevilla, 1997.

[II] Diego Ortiz de Zúñiga. Anales eclesiásticos y seculares de la Muy Noble y Muy Leal ciudad de Sevilla, metropolí de Andalucía. XII (10) Madrid, 1677: em Moreno La Antigua…: 40.

[III]Moreno La Antigua. . . : 40.

[IV] Philip A. Howard. Changing History. Afro-Cuban cabildos and Societies of Color in the Nineteenth Century. Baton Rouge: Louisiana State University, 1998.

[V] Howard Changing History. . . : 24-5.

[VIi] Sandoval La Religión. . . : 45.

[VII] Entrevista com Rodolfo Martinez, Igbín Koladé, sacerdote de Obatalá e Obá Oriaté. La Habana, Cuba. 1977. Também Pedro Deschamps Chapeaux El Negro en la Economía Habanera del Siglo XIX. Habana: Union de Escritores y Artistas de Cuba, 1970: 31.

[VIII] Ortiz Los cabildos. . . : 6-7; Howard Changing History . . . : 27.

[IX] Pedro Antonio Alfonso. Memorias de un matancero. 1854 : n. 39, em Ortiz Los cabildos. . . : 7.

[X] Sandoval La Religión. . . : 46.

[XI] Howard Changing History. . . : xvii.

[XII] Castellanos e Castellanos, Cultura . . . 1 : 112-3.

[XIII] Howard Changing History. . . : 28; Ortiz Los cabildos. . . : 8; Sandoval La Religión…:43; Castellanos e Castellanos Cuiltura …1:110.

[XIV] Sandoval La Religión. . . : 48.

[XV] Ortiz Los cabildos. . . : 7; Howard Changing History. . . : 54.

[XVI] Ortiz Los cabildos. . . : 8; Howard Changing History. . . : 55. O Bando de Buen Gobierno y Policia, de 1842, outra vez banindo os cabildos do interior da cidade e enfatizando que suas celebrações somente poderiam acontecer aos sábados e nos feriados reconhecidos. Em1853, o Governador legislou que os cabildos se localizassem na Rua San Lázaro “en el barrio de Vives desde la Calzada hasta la Diaría entre las de Florida y Cuñado ó sea Calle de las Figuras y en el punto convenido por el Retiro de Pueblo Nuevo estensivo á la estancia de Don Dionisio Delgado” . Archivo Nacional de Cuba. Fondo Gobierno Superior Civil, leg. 1677, nº 83983.

[XVIII] Esteban Pichardo em Ortiz Los cabildos. . . : 1.

[XVIII] Roque E. Garrigo. “Historia Documentada de la Conspiración de los Soles y Rayos de Bolívar.” La Habana: Academia de la Historia de Cuba, 1927.

[XIX] Franco La Conspiración de Aponte. Habana: Publicaciones del Archivo Nacional LVIII, 1963: 25-6

[XX] Franco La Conspiración. . . : 22.

[XXI] Archivo Nacional de Cuba. Fondo Gobierno Superior Civil, leg. 367, nº 13877.

[XXII] Ortiz Los cabildos. . . : 11.

[XXIII] Entrevista com o Babalawô Pipo Peña. Miami, 6 de Fevereiro de 2000. Peña, um nativo de Regla, diz que as imagens de Omi Toké eram consentidas na igreja, entanto que as de Eshu Bí permaneciam na entrada e nunca foram trazidas para o interior da igreja. Não está esclarecido se isto era porque Eshu Bi, e seu pai antes dela, teriam declinado de entrar na igreja, ou se era por alguma outra razão.

[XXIV] Entrevista com Pipo Peña. Miami, 6 de Fevereiro de 2000. Minha avó, Marta Nebot, Oshún Ilarí, muitas vezes contou-me histórias do cabildo. O aniversário de seu orixá era no 9 de Setembro, no último dia do último dia do cabildo. De acordo com o que ela me contou, quando o cabildo terminava, muitos dos participantes recobravam o alento em sua casa para pagar tributo aos orixás e resumir os eventos do dia.

[XXV] Entrevista com Pipo Peña. Miami, Florida, 6 de Fevereiro de 2000. Peña é um nativo de Regla e sua família esteve ativamente envolvida com o cabildo e com sua preparação.

[XXVI] Entrevista com Pipo Peña. Miami, 6 de Fevereiro de 2000.

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