Correo da Bahía
Devoção de pescador
Cerca de 40 mil pessoas participaram da grande festa no mar para saudar Iemanjá, no Rio Vermelho
Pablo Reis

O presente dos pescadores à deusa das águas foi uma réplica do Farol da Barra

A réplica do Farol da Barra, que era um segredo do pescador Zé Coió, 58 anos, virou oferenda. E de presente se transformou em ponto culminante da Festa de Iemanjá, ao ser levada para o mar no final da tarde de ontem pelo saveiro Rio Vermelho. Se fosse apenas o ato de conduzir ao oceano uma maquete de um ponto turístico de Salvador, a festa já teria o mérito de renovar uma tradição de 76 anos. Mais do que isso, o presente de Iemanjá também representa a crença de milhares de devotos e o legado profano de uma festa de largo de grande porte, a única que resiste com grande força, em conjunto com a Lavagem do Bonfim. Segundo estimativa da Polícia Militar, aproximadamente 40 mil pessoas lotaram a orla do Rio Vermelho, ontem.

Flashes de fé e pura diversão, devoção e total algazarra compõem o curso das homenagens à rainha das águas no 2 de fevereiro. A fila com centenas de metros de gente tentando deixar seu mimo (de um ramo de rosa a uma boneca gigante) em um dos 350 balaios disponibilizados pelos pescadores da Colônia Z-1 é uma das principais provas da veneração. A orixá considerada deusa do Rio Ogum, na Nigéria, originariamente uma negra gorda símbolo de fertilidade, encontrou na confiança dos baianos o motivo de um altar marinho. “Ver essas três filas de pessoas que não medem esforços para oferecer suas lembranças é uma satisfação grande”, vibra Eulírio Menezes, conhecido como Tenente, 75 anos, organizador há 20 do cortejo marítimo.

A fala de Tenente coincide com a chegada de quase 300 embarcações nas proximidades da praia de Santana. Na fila onde não há cansaço, reclamação ou desistências – apenas ansiedade -, Celita dos Santos, 56, aguarda sua vez de depositar um arranjo de flores amarelas no balaio. “Desde os 15 anos, cumpro esse ritual. Antes eu colocava diretamente na escuna. Quero pedir paz para o país e proteção para a minha família”, revela. No meio da confusão em frente ao Largo de Santana, blocos de improviso, grupos de amigos uniformizados e charangas, muitas delas, contribuem para dar o caráter eclético à manifestação democrática. De uma idéia surgida em um ano de carestia para os pescadores (1927), nasceu o acontecimento que, 76 anos depois, seria sinônimo de abundância, fartura em apelo popular.

Mistura – Em uma comemoração exclusiva do candomblé, o sincretismo não está presente em sua versão religiosa. A mistura é de tipos, amálgama de classes sociais, caldeirão de objetivos que vão de uma simples tarde de curtição e paquera a um momento de obrigação mística, passando por estratégias de marketing. A ONG Paciência Viva, por exemplo, aproveita a oportunidade para promover um arrastão com uma brasilianista mistura de música, futebol e artes plásticas. Com jogadores da seleção baiana de Beach Soccer e o afoxé Caxerê executando o eclético repertório de ijexá e hip-hop, maracatu e baião, Paciência Viva é uma das entidades que busca atrair adeptos para suas causas, no caso deles, as sócioambientais.

No barracão de abrigo ao presente principal para a dona das águas, baianas entoam cânticos diferentes, em seqüências intermináveis de músicas feitas em dialetos africanos. Tudo é preparação ritualística para a entrega da oferenda. O prefeito Antonio Imbassahy, um dos personagens obrigatórios no 2 de fevereiro, repete, pouco antes das 17h, seu ato de depositar uma composição de flores no caramanchão. Na tradição de Iemanjá, o presente pode ser símbolo de agradecimento ou moeda para um pedido. “Eu sempre venho agradecer e prestigiar essa festa, que é uma das mais impressionantes em participação popular no Brasil”, esclarece Imbassahy, acompanhado da mulher, Márcia. “Mas para pedir algo, teria que ser uma sociedade cada vez melhor”, completa.

Oferendas – Os balaios, à medida que ficam repletos de perfumes de alfazema, sabonetes, espelhos, escovas, pentes, bonecas e qualquer outro objeto que possa servir à vaidade de Iemanjá, vão sendo conduzidos por pescadores aos saveiros. O afoxé Filhos de Gandhy, representado por quase três mil integrantes, também carrega seus axés. “Tem dado certo, ela não falha com seus filhos”, confia Ademir Santos Silva, 30 anos, trajado com a vestimenta branca típica, a sandália, o torso e os colares. Ele, como milhares, tem relação longínqua com a devoção, desde que era criança e a tia, Olga Ferreira da Silva, participava da produção da festa.

Até para quem conhece o evento pela primeira vez e não tem pendores religiosos, a beleza é contagiante. “A fé dessas pessoas emociona”, resume a estudante Carolina Mendes, 19 anos, enquanto o caramanchão é carregado pela areia da praia e levado até a embarcação. Os aplausos da multidão são efusivos. A mistura de sensações é intensa e uma mulher incorpora alguma entidade e é apoiada pelo pai que assopra o ouvido. Na orla, sons se confundem. Uma música de discoteca tocada por um DJ em um barzinho da moda que armou um pequeno palanque e o hino interpretado por um coral infantil: “Dia dooois de fevereeeeiro/ Dia de festa no mar/ Eu quero ser o primeeeeiro/ A saudar Iemanjá”.

O saveiro com o presente principal, seguido por centenas de outros, ruma em direção a um ponto incerto, seis milhas mar adentro. Com eles, os agradecimentos pela proteção da dona das águas e os pedidos de fartura para mais um ano. Na beira, um quase-diálogo entre amigas se transforma no cúmulo da credulidade: “A casa dela é linda, cheia de conchas e areia, toda enfeitada de flores”. Diante do olhar incrédulo da companheira, a complementação: “Você acha que tanta gente assim iria dar presentes se não fosse verdade?”.

Sorry, the comment form is closed at this time.

© 2010 Eleda.org Web design and development by Tami Jo Urban Suffusion WordPress theme by Sayontan Sinha