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Livro de Cida Nóbrega e Regina Echeverria narra a trajetória do fotógrafo
Haroldo Ceravolo Sereza

Em 1937, o fotógrafo da agência Alliance Photo Pierre Verger é escalado, pela agente Maria Eisner, para a cobertura da ocupação da China pelos japoneses. Era a Segunda Guerra Mundial em seu início – na Ásia. O francês para chegar até Xangai, teria dificuldades para atravessar a Rússia:

a profissão informada pelo seu passaporte – fotógrafo – geraria fortes suspeitas de espionagem. Verger, então, foi aconselhado a tirar um novo documento, com a palavra etnólogo preenchendo o espaço destinado à profissão.

A necessidade, assim, antecipou em uma década a realidade. É na segunda metade da década de 1940, depois de muitas outras viagens e peripécias, que Pierre Verger (1902-1996) chega a Salvador (BA) e passa a viver e registrar as relações entre o candomblé da Bahia e o africano, em Benin. A história do passaporte é relatada em Verger – Um Retrato em Preto e Branco (Corrupio, 484 págs., R$ 90), lançado com um pequeno atraso para marcar as comemorações do centenário de nascimento do fotógrafo. A obra é assinada pela editora Cida Nóbrega e pela jornalista Regina Echeverria. Como defende Rosane de Andrade em Fotografia e Antropologia (Estação Liberdade, 132 págs., R$ 28), é a profissão de fotógrafo que vai, progressivamente, levando Verger à etnologia.

“Procuramos mostrar como ele conseguiu construir seu caminho, partindo do nada”, afirma Cida Nóbrega. “É uma biografia viva, porque, além de ouvirmos muitos de seus amigos e de gente de santo, éramos muito próximos: viajávamos com ele, cuidávamos dele quando ficava doente.” Cida, quando usa o plural, refere-se à turma da editora Corrupio, criada por Arlete Soares para editar em português as obras de Verger (e da qual ainda se deve citar Rina Angulo) – que, apesar de viver no Brasil e de ter trabalhado como fotógrafo de periódicos do País, só havia publicado seus estudos sobre o candomblé na França.

Regina não conheceu Verger pessoalmente. “Sabia dele o que todos sabiam: que era um fotógrafo que se interessou pela cultura negra da Bahia”, conta.

“Descobri um homem livre e despojado.” Regina é também autora das biografias de Cazuza e de Elis Regina.

A biografia, fartamente ilustrada, procura descrever como a vida de Verger o levou à Bahia. Respeita, em grande medida, a vida pessoal do etnólogo, especialmente quando o assunto é sua sexualidade. “Contamos só o que era necessário para descrever sua personalidade”, diz Cida. “Ele era muito reservado.”

A biografia de Verger também recupera a importante história da Corrupio – a responsável pela publicação no Brasil de livros como Orixás e Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos.

Liberdade – Nascido em Paris, descendendo de uma família burguesa belga, Verger vivia no bairro mais caro da capital francesa. Sua vida começa a mudar em 1930, quando conhece Eugène Huni e Maurice Baquet, e vai morar com eles num subúrbio parisiense.

Em 1932, morre a mãe, seu último elo com o mundo da alta burguesia parisiense. Aproxima-se de jovens esquerdistas e artistas e chega a freqüentar, em 1936, o Groupe Octobre, mas seu caminho é, claramente, mais individual. Em julho do 1932 mesmo, parte a pé pelo sul da França, com Pierre Boucher, que lhe inicia na fotografia. Ainda neste ano, em dezembro, embarca para a Polinésia francesa, para encontrar o amigo Huni.

Ainda nos anos 1930, Verger passa a viver como fotógrafo profissional, trabalhando para várias publicações. Usa, cada vez mais, a profissão para financiar suas viagens pelo mundo. E, de viagem em viagem, ele desembarca em Salvador, em agosto de 1946.

Verger, como lembra o museólogo e artista plástico Emanoel Araújo no prefácio, não foi o único francês a se encantar com o mundo sagrado da Bahia. Araújo cita o sociólogo Roger Bastide, o poeta surrealista Benjamin Peret e o também fotógrafo Marcel Gautherot. Mas nenhum deles passou a viver tão de acordo com as normas do candomblé quanto Verger – que, apesar da cor da pele, se dizia negro por dentro.

Uma das questões por que passa a biografia é a dúvida que sempre existiu e sempre existirá sobre se Verger, de fato, acreditava no candomblé. Ele mesmo se dizia cartesiano. “O fato é que ele cumpria todas as obrigações e vivia como um filho de santo; era absolutamente devoto e leal aos compromissos.”

Verger entrou para a hierarquia do candomblé, incorporou o Fatumbi ao nome e procurou, sempre, respeitar as obrigações de segredo da religião. Também não fazia perguntas, ou pelo menos dizia que não fazia perguntas – um método que, para Regina Echeverria, também deve funcionar para o jornalismo. Na verdade, ele mesmo diz em outros momentos, que gostava de saber o como e não o porquê.

O fato é que as fotos e o conhecimento da religião de Verger levam Théodore Monod, diretor de um instituto de pesquisa francês sobre a África negra, a propor uma bolsa para Verger. Aos poucos, o fotógrafo vai aceitando a condição de etnólogo – e registrando as proximidades entre os cultos iorubas da Bahia e da África. Não apenas isso, Verger atua como uma espécie de “pombo-correio” entre as duas tradições, distanciadas no final do século 19, depois de dois séculos de intensa troca.

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